Olhar o céu sempre me deixou tonta. Nunca entendi por que os urubus são   amaldiçoados, se têm um vôo tão digno como o de um condor.  Vi um portentoso nas montanhas que mergulham nos Lagos Andinos. Fiquei cantando ‘El Condor Pasa´, enquanto durava o seu espetáculo demonstração para turistas.  Taí um tipo inesquecível, aquele condor. Os urubus, sem nobreza e sem estirpe, também o são. Foram eles as valquírias de grandes cavalgadas no céu da minha infância. Seu negrume e poder contrastavam com a delicadeza de uns periquitinhos verdes e azuis que tive, e que morreram precocemente, talvez de solidão, em sua espaçosa e futurista gaiola, tipo loft.

De nariz para cima, vejo nuvens-cavalos, nuvens-carneiros, elefantes, girafas, casas, nuvem-nariz-e- boca, nuvens-colchão-de-anjos, nuvem-peixe, algodões rosicler que passam, passam. Só quero falar de coisas nuvens e que se solidifiquem em sua essência inconsistente. Sou uma otimista sob os óculos escuros e uma pessimista de boca carmim, com a cabeça um pouco nas nuvens. Talvez por isso, esqueça algumas coisas e seus nomes, além dos neurônios que na minha idade vão ficando pelo caminho.

Talvez por isso torça o pé nos desvãos das calçadas dessa cidade alquebrada, desloque o joelho ou me deixe barrar por um tubo de ferro fincado na calçada para evitar estacionamentos. Oh, dor! Foi o primeiro traumatismo pubiano de que tive notícia. Lágrimas espirravam como chafarizes, enquanto eu me comprazia apertando a parte íntima, imaginando sangue, muito sangue sob toda a roupa (nada disse aconteceu; foi só trauma).

Parado em um ponto, um motorista de ônibus ficou olhando, lá de seu volante, para mim, enquanto passageiros subiam e desciam. Eu encostei numa vitrine, encolhida, aos prantos, como se tivesse levado um tiro e sobrevivido ou tido um infarto nas partes pudendas. Ou sido largada por um grande amor. Entra aí eu que deixo a senhorita no hospital, ele gritou. E nem tinha hospital no caminho do ônibus, ainda consegui raciocinar.

Meu Deus, que gente de coração bom ainda existe neste mundo. Não, não, agradeci fazendo um sinal de positivo, enquanto acariciava discretamente a área trombada pela barra de ferro. Arnica no púbis, gelo no púbis. Ainda bem que a região é gordinha e bem guarnecida de pelos. Sempre detestei depilações exageradas. Viu para que servem os odiados pelos? Natureza sábia. No dia seguinte à colisão, meu ginecologista fez um tchun com a boca, e me mandou seguir viagem olhando menos o céu.

Tomo antidepressivos. Parece que eles nos ajudam a esquecer as coisas não-nuvens, mas embaçam as coisas do dia a dia, como onde botei meus óculos? Isso é um clichê de senhoras, de velhas. Usar óculos para ler, aliás, já é sinal de decrepitude, pois o olho humano foi feito para durar apenas 40 anos. A garantia é de meu oftalmo, que vem a ser meu primo de sangue. Ele diz que é possível perscrutar a idade das mulheres nos supermercados.  Mais de 40, se esticam demais o braço para ver o preço do produto, ou confirmar se têm glúten ou não.

Pior é descobrir que os óculos estão sob a cabeça, no nariz propriamente dito, pronto para serem utilizados e que você já estava enxergando o que não via.  Coisas de vó, de gente broca, como se referem os bahianos aos senis, ou aos entrados na terceira idade.

E  o que dizer de alguém se referir a alguém desfiando, antes, o nome de todos os irmãos, sobrinhos, netos, predecessores para, enfim, chegar ao da pessoa? Isso com o auxílio do interlocutor.  Sou eu, copiando minha mãe, minha avó, meus tios. Para eles, eu reservava um sorrisinho escondido e cínico: parecem brocos; estão ficando brocos; pronto, ficaram brocos. Agora, para mim, reservo o desespero.

Pior é quando isso tudo, a broquice ou esquecimento, acontece diante de gente muito jovem ou jovem o suficiente para ter certeza de que jamais envelhecerá. Não é assim, sempre? Quem acha que aos 15 completará 30 anos?  Até a semana passada, minha assistente, de pele de bronze reluzente de tanta juventude, me olhava com cara de espanto e, delicadamente, me corrigia ou me apontava discretamente os óculos dependurados em meu pescoço.

O estagiário gente-fina-pra-caramba dizia que a mãe dele também andava assim. Ai, meu saco, meu filho! Uma funcionária da equipe disfarçava e dizia aquela frase- diagnóstico abre-te-sésamo de simpatia: é estresse, chefe. Relaxa.

Vou relaxar. Talvez em algumas horas de descanso sentirei aos poucos que as palavras vêm chegando, como uma escola de samba entrando na avenida. Elas virão aos poucos, em alas, muitas alas, como as nuvens que desfilam ora coisas, ora nada. Mas quero logo a bateria e seus tamborins na ponta da minha língua. E a apoteose. Vamos catar uma pluma aqui, uma roda de carro alegórico ali, uma faixa de paetês desbotados pela chuva e suor, um sapato mal pintado de ouro. E chamar cada um um pelo nome que têm.