Tropecei na vida. O médico me disse que agora devo andar somente de salto baixo. Não, de preferência, com um saltinho de vovó. Também vale um tênis bom, bem projetado. Nada de modinha, solas planas, chinelos. Oh, desgraça que se abate sobre mim, acostumada que sou a um toc-toc-lá-vem-ela. 

Confesso que já usei salto alto em Parati e também no Pelô e não torci o tornozelo entre os vãos dos seixos rolados. É como chegar ao Everest sem usar máscara de oxigênio e ainda ficar gritando histérica, enrolada na bandeiro do Brasil. E fazer vídeo para eternizar o momento na internet. Mistura de grande feito com mico de alto risco.

Em compensação, na rua da Alfândega, no tempo em que os buracos não ameaçavam os pedestres, o tornozelo foi parar do outro lado da calçada e o sapato ficou. Em Portugal, numa pacata cidade do interior, a sola do tênis grudou na calçada e me proporcionou um peelingasfáltico e pontos no nariz e boca, costurados a frio na emergência do hospital da província. 

Ainda estou tonta com o parecer do médico que decretou o fim dos meus saltos. O que fazer com meus sapatos, agora tentando me imaginar como uma daquelas mulheres chiques, de alta estirpe, que só andam de sapatilhas e espadrilles, as alpargatas finas, ao rés do chão. 

Mas eu me sinto uma nada calçando sapatos pied-à-terre. Com eles, estou de férias, estou sabática. Eu não sou, não cresço, não crio, não aconteço, não desejo, não ouso. Quer mais? Solta um salto, por favor. Tive um namorado baixinho, com alma de stylist, que pregava: mulher de classe se conhece pelo estilo do sapato que calça.  E, obviamente, ele defendia os baixos. 

 Hoje, recordo com lembrança de fita métrica a real estatura da criatura e compreendo suas convicções estético-calçadistas.

Hoje fui advertida, que se não levar a recomendação médica à sério as consequências nefastas virão a reboque do verbete ‘males incapacitantes’. E quando penso que nossos esquecidos pés são o alicerce do nosso prédio, penso como Manolo Blahnik se tornou uma ás da engenharia com seus saltos-agulha.

Eu, que nunca pilotei um Manolo, nem de brechó novaiorquino, vou tirar meu sapato da chuva e da janela, antes que encolha e desbote.  O Natal se avizinha. Vi bolas de pendurar em árvore e pisca-piscas se assanhando em vitrines, já. 

Agora é fazer fisioterapia e ginástica específica e ir-se acostumando à ideia de subir em tamancas  só em dias especiais. O consolo é que atualmente se oferece sandália flip-flop às convidadas em fim de baile. É um descompasso ver a mulherada dançando de havaianas os derradeiros funks das festas.

 Muitos homens não compreenderão – talvez sim os fashionistas e o finadíssimo Luiz XV,  que por motivos óbvios, está para o salto alto como Santo Dumont para o avião – mas o mundo, visto de cima é melhor assim, como a perspectiva das avenidas.

 De saltos altos nossas pernocas ganham contornos robustos, o bumbum empina, a autoestima sobe, e aí tudo pode acontecer, inclusive a fadiga do material. É o que ocorre agora comigo. O médico também disse que pode ser uma questão congênita. Conheci uma jovem muito jovem que disse sofrer do mesmo mal e que, por isso, alterna saltos altos e baixos sofrendo estoica e precocemente o seu fado.

Sou pouco telúrica, mas tenho os pés no chão.  Depois do veredicto médico, é hora de ver a outra face da lua. Há o dia em que calçamos o nosso primeiro sapato alto; há o dia em que despimos o nosso último.

Os stilettos, aos pares, continuarão nas vitrines, nos pés de outras e na  minha imaginação. E ainda resta alguma festa para ir, desde haja uma cadeira na mira e um estepe-salto-baixo na bolsa.  E há ainda a confraria dos baixinhos que poderão me considerar uma mulher de classe, a partir de providenciais saltos baixos. Deixe que o digam.

Mulher que nunca tomou uma atitude sob o efeito de um bom salto alto não sabe o que perdeu.

FIM