Verinha, como a chamava-mos em familia, encantava todos. Através dos anos,  nos perdemos de vista, mas me lembro mais dela,  que é minha prima irmã,  na época em que eu, ainda criança, a via  frequentemente visitando nossos avós, entrando  naquela casa  grande e escura ja chamando vovó  ( que tinha cabelo curto e crespo) com sua voz de veludo,  “Meu  carneirinho…”, como que  espalhando a luz da ternura. Com efeito, vovó, que vivia deprimida, logo sorria ao ouvir o chamado, deixava seu quarto e, ainda sorrindo, descia os degraus daqueles dois lances de escada que lhe eram sempre penosos, para encontrar a neta na sala.   Com seu porte alto,  pescoço longo,  olhos grandes,  em cujas pupilas negras  o  brilho do sonho parecia estrela única no mistério da noite- cabelo  abaixo da cintura, lábios  bem recortados, Vera, além de  linda, com ou sem maquilagem,  tinha a suavidade da brisa. Seus movimentos languidos, quase dançantes, não so refletiam    o bem estar que ela parecia encontrar consigo mesma, mas traziam calma, como que apaziguando o próprio tempo.

A beleza é como um segredo, a gente olha e olha sem conseguir decifrar, tampouco se libertar. Quanto mais se olha, mais surpreendente “ela” aparece, mais se quer descobrir, e mais se quer olhar. Sentando conosco `a mesa de jantar, Verinha se tornava naturalmente foco de atenção. Acho que toda menina elege um ideal de beleza feminina, e ela era o meu. Personificou as heroínas das estórias fantásticas que eu gostava de ler, foi aquela, por exemplo, por quem o Califa Harun All Raschid se apaixonou, nas 1001 Noites.

Vera teve  o direito e coragem de ser modelo, durante uma época em que nossos pais, dois irmãos machistas, pensavam que “moça de família” não deve aparecer por atributos físicos, em fotografias de acesso publico, “até um presidiário pode colar a imagem de um modelo na parede”,  papai disse uma vez, deixando-me perplexa e indignada. ” E daí?”, perguntei,  sem conseguir compreender qualquer motivo proibindo uma pessoa bela  ser  apreciada por gregos e troianos.  “Problema do cara, e não do modelo”, falei, sem saber o que ainda tinha pela frente com que me chocar na minha própria vida, desse  mundo machista que covardemente considera a mulher responsável por poder vir a “excitar” seja la quem for. Mas Verinha, com   seus apelidos carinhosos, seu riso abandonado e cristalino, ao som do qual nenhum conflito sobrevivia, desarmava aquela familia vetusta e auto-importante. Todos se sentiam queridos e, claro, orgulhosos.  Durante as duas décadas que se seguiram,  ouvi   pessoas que ao saber meu sobrenome, confessavam nunca terem esquecido minha prima. “Linda, mas não só isso…” diziam algumas.

Não só isso, realmente, pois há muitas moças bonitas que são modelos, e fàcilmente esquecidas.  Mas a beleza de Vera era especial na comunhão com a doçura, (qualidade cada vez mais rara, talvez  mais até nas mulheres do que nos homens, hoje em dia) naquele jeito que ela tinha de fazer com que as pessoas `a sua volta se sentissem tão bem vindas e fofas como  as pequenas crianças que foram um dia;  imaculados projetos  de Deus. Quem não gosta de se sentir tao novo e puro quanto como nossa mãe  um dia nos recebeu? Quem não gosta de ressuscitar em si mesmo a inocência  de ter sido princípio?

Enquanto a sexualidade se mostra cada vez mais ostensiva, enquanto as pessoas, inversamente, estão mais assustadas e sòs, mulheres bonitas procuram  se identificar ao tipo de “Femme Fatale”; `a viagem de poder daquela que, como diz o título,  destroe os que caem sob seus encantos. Mas a doçura de minha prima me fez compreender que a sensualidade  da mulher é maior se maternal, quer dizer, recuperadora, ao invés de “fatal”. Substitue  a destruição  do fim pela redenção do principio,  os pontos finais  pelos recomeços cuja esperança está sempre pronta a ressurgir dentro da gente.

Refleti sobre tudo isso ao estar com Alix, filha de Vera, e que muito me lembra a mãe, na visita que fiz a Benki, com meus filhos e ela. Mas, independente da semelhança entre mãe e filha, o que mais  lembrou minha prima, foi Alix ter me contado, diante dos insetos  que vinham da floresta e entravam no nosso espaço, que a mãe tinha lhe apelidado de “baratinha”, pelo fato de que Alix, em criança, amava a peça infantil “Dona Baratinha”. Não pude deixar de rir,   pensando que Verinha com seus apelidos pode mudar tudo.  A liberdade de transformar um inseto, que tão frequentemente causa pavor, num diminutivo amoroso, relacionado a um fato significante e lúdico  da infância de uma filha, assim como a criatividade da Pixar, ao criar, em WALL-E, uma barata super fofa e amiga do robozinho,  redimiu todos os insetos que eu via então, ou antecipadamente, temia. Eles também passaram a ser “baratinhas”. Talvez, somente a doçura possa fazer a mágica de transformar  o grotesco em fofo, e a exaustão das sobras em que nos transformamos na aurora dos  eternos recomeços.