Copacabana, Princesinha do Mar há muito já tem seu oceano de camelôs, pedintes, cracudos, traficantes, moradores de rua, espertalhões, pivetes e assaltantes de calibres vários. Estão postados, prostrados, correndo ou caminhando por calçadas esburacadas. Cabe aos que passam saber se safar para não ser a próxima vítima. O resultado desse caos é uma população ressabiada, mas que ainda conta com um nível morto de esperança.
Abatida por uma virose, dessas genéricas que os médicos reconhecem até pelo telefone, cruzei a Nossa Senhora de Copacabana com pena de mim. Certifiquei-me de que o sinal estava fechado para os carros e atravessei a rua.
Por conta da minha desconfiança, olhei para os ônibus e carros parados, rangendo motores ciscando nervosos. No Brasil, motoristas têm raiva de pedestres e de sinal vermelho. Na primeira fila, um inquieto motoqueiro, com pinta de entregador, mexia a direção de sua modesta máquina de um lado para o outro.
Ele disse alguma coisa que não entendi, por conta do ronco da rua e da minha constipação buco-maxilo-facial Olhei para ele, que perguntou em bom som por que eu estava triste. E acrescentou que assim eu não chegaria a “lugar nenhum”.
– Por que essa cabeça baixa?
Não pude deixar de responder, achando engraçada a critica dele à minha postura física e moral. Sorri e disse:
– Estou gripada – Argumentei, quase me desculpando pela figura molambesca que em mim habitava.
O sinal piscava para abrir para os carros.
– Ah! Então vai pra casa e faz repouso. Descanso, hein, muito descanso – advertiu o motoboy.
Pisei do outro lado da calçada, fazendo um sinal de ok para o rapaz, preocupado com minha saúde. Pensei no clichê: afinal, o mundo não é tão mau assim.
Dias depois, já restabelecida, voltava com minha mãe da missa de sétimo dia de um tio querido. Pedi ao motorista do táxi que nos deixasse o mais próximo da portaria do prédio onde ela mora. Paguei a corrida e com um troco de cinco reais na mão tentava ajudar a mãe a sair do carro.
Assim que ela pisou na calçada, vi um mendigo postado em frente ao prédio. Eu já o conhecia de vista por sua magreza de faquir, pernas incrivelmente finas e pela forma dramática de pedir esmola.
– Dá um trocadinho. Mas se for uma comidinha melhor ainda. Ou um pão com café.
É de doer o coração o texto dele. Naquela situação, era inevitável nos encararmos. E ele repetiu a cantilena pungente, olhando fixo para a nota de cinco reais que eu, atrapalhada em segurar duas bolsas e a mãe, trazia entre os dedos.
Firme na minha convicção de não incentivar a indigência, fiz um olhar entediado enquanto apoiava minha mãe em seus passos inseguros. Até que ela, ainda abalada com a missa do irmão perdido há tão pouco tempo, empacou e anunciou:
– Vou cair, vou cair.
Escorei a mãe com meu corpo e com minha cara de pânico. Paramos no meio do caminho. De repente, o mendigo faquir saltou do chão e avançou em direção a nós.
– Deixa que a gente segura ela. Mora onde?
Surpresa com o gesto, apontei com o queixo a portaria, a pouquíssimos passos.
Eu e o mendigo faquir ficamos tão perto, ele de um lado, eu de outro e minha mãe no meio, que vi quando ele, muito mais jovem do que parecia em sua miséria profissional, sorriu desdentada e solidariamente ao ouvir dela que a tontura passara.
– Graças a Deus, vó! – ele comemorou.
E nós dois levamos minha mãe até a porta gradeada do edifício, para onde já descia o porteiro estranhando a cena. Também surgia a cuidadora, igualmente surpresa. A vendedora da loja de colchões ao lado do prédio correu trazendo uma cadeira.
O mendigo faquir ainda perguntou se eu queria que ele ajudasse minha mãe a subir os degraus até o hall do elevador. Recusei agradecendo, e ele entregou o braço da mãe ao porteiro. E foi se virando para voltar aos seus andrajos estendidos no chão e prosseguir na sua cantilena apelativa. Eu o chamei e com uma vergonha inexplicável, lhe passei a nota de cinco reais ainda enfiada entre os dedos. Ele agradeceu sorrindo. Quanto valia a ajuda que ele prestara?
Momentos depois, ainda sem resposta, comentei com a vendedora da loja de colchões do meu assombro com a prontidão do mendigo faquir e de seus cambitos a quem eu, inicialmente e como sempre, negara um auxílio e que me fizera uma caridade. Ela concordou, mas lembrou que já vira um aleijadinho sair correndo da polícia.
Recentemente vi o mendigo descarnado, desta vez na porta do banco, pedindo por um prato de comida ou um pão. Conferi discretamente seus caniços e ainda duvidei que eles pudessem pô-lo de pé, tão imediatamente quanto presenciei. Ele, com a máscara constrita da fome, parece que não me reconheceu entre tantos passantes. E me ignorou, como eu fingi e finjo ignorá-lo.
Ele vestia uma velha e maltrapilha camisa do Flamengo, meu time. Imaginei o jovem homem que vi de perto vibrando num estádio por um gol, pulando em cima de suas pernas, depois de encerrado o seu expediente nas ruas. Fui andando, movida por uma certo afeição pelo mendigo faquir. Afeição retirada do meu volume morto de esperança.
FIM