Esperando, dentro do nosso carro estacionado, a hora de entrar numa igreja  que descobri, finalmente, oferecer a cerimonia da missa em Latin, eu e meu marido aproveitávamos para acabar um baseado que tínhamos conosco. Devo aqui dizer, que embora eu não assine em baixo de todo o dogma católico, o fato de ter frequentado uma escola de freiras, quando tinha seis anos de idade, e frequentemente ouvido a celebração da missa em Latin, me sinto, quando dela participo, recuperando a essência daquele passado, no nirvana Proustiano da atemporalidade da memória; a própria dimensão de eternidade do que vivi.

Tínhamos alguns minutos, e maravilhosamente liberta  da cronologia do tempo, por aqueles tragos, que me desacorrentavam do compromisso de submeter minhas açōes e pensamentos a objetivos práticos, sempre adiante do momento presente,  desprendi-me, por alguns momentos, da finalidade de sair do carro dali a pouco, e deixei meu pensamento inteiramente livre.

Lembrei-me então, de Mateus, o menino cuja mãe, la da Amazonia, humildemente me perguntou se eu poderia pagar pra ele um telephone cellular, de Natal.     Quando fomos `a floresta, Mateus, que so tem dez anos, se esmerou subindo nas `arvores mais altas e colhendo para nós frutas deliciosas, que nunca havíamos visto. Estava prestes a começar suas aulas na escola, e inteligente do jeito que é, ja se preparava, com afinco. Não pensei duas vezes, em lhe comprar um cellular que fosse razoável, para um menino. Não me ocorreu que Mateus, com aquele desejo, ja tinha “queimado”, la dos confins da floresta, todas as etapas que, até pouco tempo, foram degraus nos sonhos de qualquer menino : desejar trenzinho elétrico, por exemplo, ou carrinhos de brinquedo, ou boa bola de futibol, ou até mesmo bons cadernos para desenhar, com variada seleção de lápis de cor. Sem nunca ter tido nada disso, Mateus, tão ágil e instintivo, tão “cobra”, na floresta, só queria saber do cellular. Alertei sua mãe, sobre as perguntas de meu marido: “ e se o menino parar de subir em árvores? E se parar de se esforçar na escola,  por passar tão drasticamente do isolamento na natureza, ao acesso a “the world wide web”, o w.w.w.  que nos é tão familiar e imediato, quanto, na sua exigência de um pensamento exato, mecânico e objetivo, mesmo na diversão que oferece através de jogos e apps, é tão facilmente inimigo da contemplação, da imaginação, e até mesmo da reflexão?

A mãe de Mateus me compreendeu e  agradeceu, pelo conselho que dei a ela, de so deixa-lo usar o “device” como recompensa, depois de fazer seus deveres escolares.

Voltando aos minutos que meu marido e eu ainda tínhamos dentro do carro, antes da missa começar, refleti sobre as etapas que Mateus estava “queimando”, e me dei conta, mais uma vez, de como esses smart phones vieram a se tornar cordōes umbilicais, que a tudo e a todos nos conectam, e sem os quais não mais vivemos. Minha imaginação bateu asas, e, considerando a capacidade desses telefones nos localizar, seguir, alcançar, seja lá onde estivermos, reduzindo  nossa privacidade e anonimidade quase a zero, assim como mapeando o mundo, decifrando e ditando os caminhos pelos quais devemos dirigir, mais o fato de nos permitir pagar nossas compras, sem precisar usar diretamente cartōes de crédito, cheque ou dinheiro, pensei que o dia em que a Apple, `a maneira da avançada medicina em Star Wars, decidir implantar o iPhone em nosso próprio corpo- estando este ja capaz de controlar coisas como nosso ritmo respiratório, e resolver mais um milhão de outras- não devia estar longe.

Levando esse controle do telephone mais adiante, imaginei tornar-se este capaz de vir a decifrar pensamentos, decodificando, em palavras, as ondas “energéticas” que os processos mentais devem emitir. Hoje, afinal, tudo que é mistério, como o espirito,  o pensamento abstrato, os entes de nossas fantasias, seja lá,  é chamado de “energia”…

Ninguém, nesse caso, teria nem mais a privacidade do seu próprio pensamento, coisa que, alias, ja vem se acabando, com a uniformização da mente e desejos de todos nós, pelo constante bombardeio de propaganda digital, maneiras de pensar, o que aprovar, e o que desejar. Mas, uma vez por todas extinta essa privacidade, ninguém teria absolutamente mais nada a esconder, e a sinceridade não conquistada entre uns e outros seria imposta, e definitiva. Haveria ainda, nos recessos de cada ser, algo sobre o que ser sincero, ou o pensamento de todos, `aquela altura, ja seria exatamente o mesmo, em qualquer cabeça? Terīamos, com isso, a devolução do pedaço mordido da maçã, que nos fez cair do paraíso? A utopia da conexão de todos os seres, ou um mundo sem guerras, competição (desde que todos saberiam os planos do “inimigo”) mas também sem alma?

Despertando tantas questōes, acho que o desenvolvimento da minha ideia sobre o absoluto reino do iPhone daria um filme de ficção cientifica, sobre um mundo que tanto poderia engendrar os seres vazios do Admirável Mundo Novo, quanto, num ponto de vista bem mais optimista, a utopia de uma absoluta transparência, em que ninguém poderia fazer planos obscuros, em relação a seus semelhantes?

Ouvindo tudo isso, meu marido ainda sugeriu, como parte do script, que Mateus viesse a se tornar o inventor desse “software”, lá da remota e ameaçada Amazonia….

Isso e outros assuntos ficam pra quem quiser desenvolver a ideia, pois embora as questōes que desperta sejam válidas, nenhum de nós aqui escreve scripts…