Acho interessante a tendencia de atribuir gêneros (masculino ou feminino) a entidades, como o mar, os rios, o céu, e, revertendo ao título, `a/ao Ayahuasca. Não estou criticando a mencionada

tendência, porque eu mesma atribuo gêneros, que, em geral, estão de acordo com a minha lingua original. Mar, em português, é o mar, ao passo que em francês, é la mer. Embora a língua inglesa neutralize, com o artigo the, grande parte da divisão entre gêneros, em contextos verbais mais íntimos, se vê obrigada a atribuir um she, ou um he, ao que em princípio, seria somente um it. Assim, no filme Disney Nature, sobre o mar (excelente documentário, aliás), este virou um she, que eu não conseguia aceitar, não so por causa da nossa lingua portuguesa, que o trata de ele, mas porque vejo naquela imensa extensão de  água indomada, o poder exclusivo de invasão viril. Em fotografias que se pretendem sensuais, por exemplo, ja vi mulheres sentadas de pernas abertas, rente `as aguas salgadas, enquanto a espuma de alguma onda furiosa parece novamente explodir, de encontro ao sexo delas. Vejo, na sensualidade desse encontro, a completude da união do poder masculino de invasão, com a aceitação da entrega feminina. Se eu olhasse o mar como outra ela, aquela sensualidade teria um tom masturbatório, e ao invés de expressar, pra mim, completude, expressaria, talvez, narcisismo.

Em relação a automóveis, que pra nos brasileiros, são eles, viram elas ate para os americanos, quando estes, orgulhosos do seu veiculo, tentam personaliza-lo, “shegoes really fast…”, ja ouvi um cara dizer, dando tapinhas na “bunda” do porsche novo que havia comprado, como se este fosse sua nova namorada. Mesmo sabendo de varias justificações psicológicas para tal sublimação, fico me perguntando, como que um veículo, cujo poder na velocidade, e de “furar” o ar propelindo-se pra frente, nas extensões que transpõe, vem a ser tratado como ela. O mesmo acho, no tocante  a navios, barcos, aviões, trens, e foguetes espaciais, antes mesmo de saber como são tratados, na lingua X ou Y.

Sei que tenho certa relutância em atribuir o gênero feminino ao que pode ser neutro, por este permitir “as pessoas ficarem “fofas” e sentimentalóides, em relação `a entidade em questão. Mãe natureza, por exemplo, me soa super piegas. Na sua lei do mais forte, no constante processo natural do bicho maior, ou mais poderoso, comer o menor, a natureza não “maternaliza” ninguém, acho que, ao contrário, sua mensagem, de extrema dureza, vai mais na linha agressiva e guerreira de Nietzsche, “o que não mata, torna mais forte”. Posso olhar a natureza como ela, mas não como mãe. A artificialidade sim, pode ser protetora e envolvente, afinal, surgiu primeiramente para tornar a sobrevivência mais fácil, para amaciar, a natureza. Se pegou a rédea nos dentes, e em muitos aspectos virou destruição, ja é outro assunto.

Quando comecei a participar dos rituais de Ayahuasca, com os índios Huni-Khuin, não pensava duas vezes ao me referir ao chá como o Ayahuasca, antes mesmo de saber que na mitologia desses índios, ele é tido como o seu primeiro pajé, aquele que, na estória que contam, foi morar com a Jiboia no fundo do lago, e tendo retornado doente para o seu povo, instruiu a todos que quando morresse, misturassem as plantas que nasceriam dos lados de sua rede, num chá que lhes traria todo o conhecimento que ele próprio havia aprendido com a Jiboia, no fundo do lago. Quando bebemos o cha, disse-me Bane, estamos bebendo aquele primeiro pajé. Tal semelhança com a comunhão crista reverte a um canibalismo atávico.

Entretanto, através dos anos, tenho ouvido Ayahuasca ser chamado/a de “mamacita”, (mamãezinha), em cançōes ocidentais que nāo poderiam ser mais piegas, ou de Grandmother (avó) entre americanos, e por aí afora.

Alguns explicam que o feminino é o que cria, como a natureza, e Ayahuasca é a voz da natureza, a voz da floresta. Tudo bem, mas essa criação é material, quer dizer, física, e imediata, do mesmo jeito que nós somos, também, materiais, e nascidos do imediatismo dos processos físicos.

Mas o que dizer sobre a criação de ideias e de tudo que nasce do pensamento abstrato? Homens não parem filhos, e talvez ate por isso,  através da historia, vemos que existiu maior numero de grandes escritores do que escritoras, escultores do que escultoras, filósofos do que filosofas, empreendedores inovadores do que empreendedoras, maior quantidade de descobertas cientificas feitas por homens, do que por mulheres, etc. Mas certamente por causa da situação do planeta, tudo que se fala é o “sagrado feminino”.

Mais do que simplesmente forte, o poder do Ayahuasca, longe de ser como o de uma “mamãezinha”, é violento, e destruidor de todos os nossos engodos e defesas mentais. É o poder que nos bota, impiedosamente, cara a cara com a dor de que mais nos escondemos.

Na sua autenticidade orgânica, Ayahuasca é sim a voz da floresta, das plantas, dos animais. Na  dimensão dionisíaca, de nos reduzir por instantes ao tumulto de nossas vísceras, o cha tem, mesmo, a fisicalidade da natureza, da fonte feminina de criação. Mas na sua dimensão cósmica, que destrói os limites das nossas noçōes de medida, quer dizer, de comparação entre alto e baixo, grande e pequeno, grotesco e sublime, na magnitude que da aos nossos cinco sentidos, eliminando a relatividade com que percebemos o “nosso” mundo, Ayahuasca nos leva ao espírito, `a criação imaterial.

Voz de Deus e voz da terra, Ayahuasca não é simplesmente “mamãezinha”, tampouco, “vovó”, mas o Ele terrível, e a Ela visceral; o pai, a mãe, o filho, e o espirito santo.

Como que concordando com essa completude, não há, entre os seres humanos, nada mais bonito do que a delicadeza feminina no homem viril, e a firmeza masculina na mulher delicada.