Nala veio parar comigo, quando nos mudamos pra Boulder, e meu filho, com quem ela morava, foi em busca do mar, na Califórnia. Ja tínhamos um shitzu e um passarinho conure, que nem um papagainho miniatura, e super inteligente. Os veterinários nos alertaram que mudança é um grande stress, e o shitzu poderia aguentar, mas já o passarinho… era complicado. Mas eu ja tinha salvo o passarinho de poucas e boas, ele tinha que conseguir. Quanto ao cachorro, a felicidade dele não é estar com os donos?

Enquanto lá em Madison, onde morávamos, homens da companhia de mudança empacotavam tudo da nossa casa num enorme caminhão, perguntei a um deles se não poderia, ganhando  extra,  fazer uma segunda viagem, com o passarinho e o shitzu. Meu marido ficou  chocado, como se aquilo fosse uma ofensa pro homem, porque neste país todas as funçōes são rigidamente determinadas, e quem muda objetos de uma casa, não vai mudar animais; quem limpa o chão, não limpa os tapetes do chão, quem faz faxina não pode ajudar com a roupa, etc.  Quantas vezes ouvi dele, “voce não esta no Brasil…” como no Magico de Oz, se dizia, “You are not in Kansas, anymore…” O fato é, que tanto em Kansas, como no Brasil, ou nos Estados Unidos, não é vergonha nenhuma fazer algum trabalho extra, para ganhar dinheiro. De fato, o cara ficou todo animado. Como a viagem leva muitas horas, paguei suficiente para que ele passasse a noite num hotel de estrada, mas ele realmente estava tão animado que preferiu tomar um estimulante e fazer a viagem toda de uma vez. O cara chegou com os olhos pulando do rosto, mas o passarinho e shitzu chegaram intactos, e enquanto o primeiro se deu super bem, o segundo, que ja era meio esquisito (era um cachorro que nem gostava de comer) pirou de vez. Passava horas lambendo as paredes da casa alugada, com reverencia, como que se desempenhando de uma tarefa religiosa.  Fazia pipi e coco em todos os lugares, não respondia pelo nome, e frequentemente tentava escapar, até que conseguiu mesmo fugir de vez. Nala, por incrível que pareça, ja nasceu de uma concepção heróica; ela é mistura de shitzu (não o mesmo que  tínhamos) com rottweiler. Parece que a mãe, que era a  rottweiler, estava dormindo, quando o pai, shitzu, resolveu botar pra quebrar, gerando essa cadela de olhos doces, pernas curtas, corpo volumoso, e inteligência transcendental. Nala é o canino ideal. Nunca sujou a casa, nunca reclama, quando, por um motivo ou outro, temos que fecha-la por algum tempo no quarto,  e sempre soube esperar  que acordássemos, fosse a hora que fosse, para lhe dar comida.  Aliás, mesmo que ela adore comer, como qualquer cachorro saudável, ela espera, antes de sair da cama que reparte com a gente,   que eu lhe de o carinho matinal de todo dia, para so então, ir atrás do meu marido, que lhe da sua primeira refeição, la na cozinha. A excitação que mostra,  `a volta de sua comida, não se compara `a felicidade que fica, ao perceber que vou leva-la para passear.  Pega sua coleira nos dentes, e vai desfilando até a porta, numa  altivez  que mistura orgulho e dignidade.   So isso ja mostra, que, pra ela, antes do mandatório chamado dos instintos, está a  liberdade opcional do  espirito.  Além da cegueira de um estômago vazio, ela enxerga o amor.  Me permite  contrariar radicalmente, aqueles que dizem que ela “vive pra comer”.  O incrível, o realmente incrível, é que Nala tem capacidade de maravilhamento. Já peguei ela me olhando de um jeito, que o dizer “seja quem seu cachorro pensa que voce é”, fez um sentido pungente, quase doloroso.  Aquele olhar dela era tão comovente e tão revelador, que eu ficava quase aflita. Dei pra ela uma bola de plástico transparente, iluminada por dentro, de luzes que piscam, coloridas, sempre que bate no chão. Nossa, dizem que cachorro não vê cor… E quanto a se apaixonar? Diante daquele objeto pisca- pisca iluminado, ela vê uma joia, e fica toda possessiva, e morde a bola com expressão de êxtase, e outra vez incrível, ainda consegue fazer uma pausa no meio de tanta avidez, pra olhar pra mim, com gratidão ! A bola colorida, pra Nala, da uma sensação parecida com a da primeira boneca, pra uma menina, ou um diamante perfeito, pra uma mulher. Ela fica demais, na sua mistura de orgulho de ter o lance e fascínio, ao mesmo tempo. Trata-se um brinquedo pra criança, mas eu adivinhei como ela ia gostar dele, e como ela não pode comer a bateria das luzes, eu so deixo ela brincar o tempo suficiente de não romper a superfície de plástico. Fica em transe, é muito intenso!

Meu primeiro vínculo com ela é inesquecível. Meu filho ainda morava em Boulder, e, como ia ficar uma semana no “Burning Man” , deixou-a conosco. Recentemente chegados de Madison, meu marido ja se encontrava fora, por dez ou doze dias numa viagem de negócios, enquanto eu, minha filha Olívia, então adolescente, e os animais, estávamos meio que acampados numa casa alugada, grande, decadente, e assombrada. Olivia,  no orgulho,  intolerância, e suposta auto-suficiência, dos seus difíceis quinze anos,  escolheu morar no basement da casa e fazer , daquela grande extensão húmida, escura, e, segundo ela própria, preferida dos fantasmas, a sua área. De noite, levava  Nala pra dormir com ela. Naquela vez, eu tinha descido cautelosa, para desejar boa-noite `aquela que até então fôra minha  filha-amiga- de -copo- e de cruz, e que agora me rejeitava como uma criatura estranha. Mas eu ia  só dizer boa-noite.  Deitada numa almofada, dava pra ver que Nala, de quem meu filho recentemente tinha se despedido, se sentia abandonada num limbo, e eu, sem conhecer ninguém, numa cidade nova, e numa casa decrépita, ignorada do mundo.

A TV na parede, acabava de mostrar a cena do filme Life of Py, em que o menino, dentro do barquinho quase náufrago, grita para o tigre ja esquálido, que vinha tentando salvar, contra todas as circunstâncias,  no meio de um oceano infinito, esquecidos pelo mundo,”We are dying, Py!”, num tom apologético, de quem fez tudo mas não conseguiu- e ao mesmo tempo desesperado. Eu disse boa-noite pra Olivia, que estava no seu computador, e ela revirou os olhos. Contendo os soluços, antes de sair do quarto, vi Nala, tao jogada ali  na almofada, quanto o tigre, no banco do barco, eu e ela, deixadas pra trás e tendo deixado tudo, pra trás.  Num abraço impulsivo,  me joguei sobre ela, ” good-night, girl, I love you”, e ela me olhou, “dizendo” que entendia…