Quando primeiramente pensei em visitar os índios na floresta, fui obrigada a considerar todos os possíveis e impossíveis riscos da viagem, vendo a aflição do meu marido, que, americano, odeia mosquitos, não pode viver sem ar refrigerado no verão, e não dispensa a proteção do artifício, a certeza de regras, leis, e tudo que pode programar nosso comportamento. Sabendo que eu levaria nossos dois filhos, me chamou de louca, irresponsável. Naquela época, Olivia, que sempre foi complicada para comer, e super sensível a problemas digestivos, só tinha 13 anos, e era magrinha além da conta. Sem saber se seria fácil, levar no barco que vai até a aldeia, os muitos litros de água mineral que precisaríamos por alguns dias, achei que meu marido tinha razão, e pensei ter desistido pra sempre ir `a floresta. Afinal, se eu própria nunca fui daquelas que gostam de acampar e aguentam, com espírito de aventura, as privaçōes de facilidades com que geralmente contamos, pareceu-me inconcebível submeter minha delicada filha `a tal situação.

Mas vindo a conhecer Benki, alguns anos depois, impressionada com a seriedade e o foco que ele transmite, jurei a mim mesma levar, um dia, meus dois filhos `a sua presença. Quando finalmente consegui contacta-lo, e ele consentiu que fossemos, o aeroporto de Rio Branco, segunda etapa da viagem, estava fechado devido a um incêndio, e não podíamos comprar passagens pra lá. Como a aldeia Ashaninka Apiwtxa, fica no limite entre Brasil e Peru, raciocinei que poderíamos sair direto de Los Angeles para Lima, e de Lima, prosseguir. Meu raciocínio foi simplista, eu estava longe de imaginar que era um milhão de vêzes mais fácil alcançar Apiwtxa , sem sair do Brasil. Estávamos pensando chegar dois dias antes do pessoal da TV Globo, que estaria filmando lá, como Benki me tinha avisado.

Determinada além de mim mesma, e da geografia do mundo, pedi a Chris, meu filho, que ja tinha ido `a floresta visitar os índios Huni-Khuin, e tinha amigos americanos que se aventuraram por aldeias indígenas no Peru, para descobrir o caminho, organizar todas as conexões e meios de transporte que deveríamos pegar para chegar `a aldeia Ashaninka. Chris passou dois dias no computador, pois, obviamente, nenhuma agência de viagem programa tal peregrinação. Eu não tinha idéia de quantas paradas teríamos que fazer, tampouco da extensão de água a transpor de barco, mas estava cada vez mais firme no meu propósito: Meus filhos místicos e yoga tinham que encontrar Benki, nem que leva-los até ele fosse a última coisa que eu fizesse na vida. Para dar uma ideia da nossa jornada, que durou doze dias, estivemos em trânsito a maior parte do tempo, tendo que parar em nove pequenas cidades e vilarejos, para finalmente poder passar dois dias em Apiwtxa. Pegando um avião de missionários em Pucalpa, conseguimos chegar a Breu, aldeia indígena, no Peru, onde continuaríamos no tal barco (que eu estava longe de imaginar tratar-se apenas de uma canoa a motor) rumo a Marechal Thaumaturgo, já no Brazil, e de lá prosseguir mais cinco horas rio acima, para Apiwtxa. Não consigo esquecer o momento em que vi a estreita canoa que nos levaria, atracada `a beira do rio, com nossos pertences empilhados sob coberta de plástico, entre dois dos pequenos bancos em que nos sentaríamos. ” É isso o barco?”, perguntei a Chris, “…Voce acha que seria um transatlântico?”, ele respondeu rindo, enquanto me ajudava a entrar na canoa, equilibrando minha mochila nas costas, para não me desequilibrar e virar a canoa. “Eu ja sabia que não teria banheiro no barco, mas mesmo assim esperava encontrar um bar …”, confessei, chocada com a minha imaginação. Além disso, achava que Marechal Thaumaturgo seria nossa próxima parada, e assim que nos sentamos na canoa, perguntei ao barqueiro, o qual viaja de pé na pequena popa, quantas horas levaria até lá. Ele parecia um índio bem velho, e não dava pra perceber se seus olhos estavam quase fechados por serem puxados, ou por estarem contra o sol, ou porque sua visão ja era fraca. O tom hesitante com que respondeu, ” Três horas…”, não me impediu acreditar que ainda em plena luz do dia, estaríamos na reta final.

Chris tinha comprado um guarda-chuva para Olivia e outro pra mim, para que conseguíssemos viajar na sombra, pois o sol lá bate super forte, e me disse que se ficássemos cansadas naquele banco tipo tábua, poderíamos nos encostar na nossa própria tralha, aquele monte irregular, bem atrás de onde me sentei com Olivia.

Partimos. A canoa ia devagar, e o rio, naquela época do ano, não só estava baixo, como cheio de troncos de árvores, galhos grossos e pontudos se espichando da superfície, e com os quais, se nos chocássemos, fariam a canoa virar sobre nós com motor e tudo, podendo até mesmo nos matar, vim saber eventualmente. Prosseguindo, não podíamos deixar qualquer parte de nossos braços ou pernas bater contra eles, a risco de seriamente nos machucar. Mas na companhia de meus dois filhos, entre céu e rio, rodeada por água e floresta, me senti mais enraizada e forte do que em qualquer dos outros lugares que conheci. Quando Chris alertava, em inglês, meio que imitando as repetitivas gravações designadas `a segurança dos passageiros, nos brinquedos dos parques de diversão, “mantenham mãos e pés todo o tempo dentro do veículo” (keep hands and feet inside the vehicle at all times) pensei que estava satirizando o excesso de prevenção dos americanos, contra todas as possibilidade de perigo.

Repartindo com Olivia o encosto formado por nossa bagagem, eu, relaxada, deixei parte da perna que tinha dobrado tombar contra a borda da canoa, nem mesmo ligando que meu joelho excedesse os limites desta. Como que deitada “eternamente em berço esplendido”, não havia, em mim, lugar pra noção de perigo.

Questionando meu bem-estar, ocorreu-me que eu e meus filhos não temos em comum o que se pode chamar lar original, “home”. Nasci no Rio, e lá tive Chris , morando com ele quatro anos diante de um mar que nunca pensei um dia me separar. Mas, casando com Steve, mudamos para os Estados Unidos, onde, contando o Colorado, nosso lugar atual, vivemos em quatro estados. Passamos alguns anos em cada um deles, e Chris encontrou seu lar em todos esses lugares. Durante algum tempo, esqueceu-se da língua materna (meu marido não fala português) e seu primeiro idioma passou a ser o inglês. Ja tinha sete anos, quando eu tive Olivia, no Midwest americano. Diferente do irmão, que se familiarizou com todas as cidades em que aterrissamos, ela, que é americana de nascença, amava o Brasil acima de tudo. Fez o que podia, para que eu e ela nos mudássemos pra la, até que, vindo finalmente parar em Boulder, sossegou. Mas, de vez em quando, ainda diz que quer ir morar na floresta (nem mais no Rio…)

Colorado é o quarto estado em que moramos, e nossa casa atual, a décima. Com tantos lares, e idioma, deixados pra trás, e já tendo Chris ido morar na California há seis anos, tornou-se difícil apontar um lugar em comum com eles, como nosso lar original. Mas na floresta das florestas, parece que retornamos às raizes das raizes, assim como, sob Ayahuasca, eu e eles nos encontramos numa realidade eterna, cujas raízes estão dentro de nós. Sob as árvores e em nosso coração, verdade física e do espírito, esse princípio imemorial se revelava e me embalava, rio acima, como se tudo o mais tivesse deixado de existir.

Quando meu joelho se chocou com um galho de árvore, que o barqueiro certamente não viu, Chris levou tal susto que, só mesmo para poupá-lo, recolhi-me nos limites da canoa. Nosso barqueiro não só tinha vista deficiente, como um motor extremamente lento. Várias canoas, indo e vindo, eram bem mais rápidas do que a nossa, mas mesmo assim, entre as paradas para mergulhar, e nosso lento avançar, o percurso era pra mim renovador, ao mesmo tempo que familiar, alheio ao resto do mundo mas, ainda assim, parecendo conter a verdade de todo o planeta. Depois de quatro horas passadas, perguntei novamente ao barqueiro, quanto tempo ainda levaria para que chegássemos a Marechal Thaumaturgo, ” Três horas…” ele respondeu, com a mesma atitude vaga. Olhei para Chris, “Voce acha que ele me entende?”, “Sei lá…” Chris respondeu, sem querer revelar que antes de Thaumaturgo, bem antes, aliás, ainda tínhamos que chegar ao Breu. Quando vim a saber disso, fiquei perplexa, “… Mas como, se saímos do Breu?”,(aquela altura, pensei que estava sonhando) ” É outro Breu, mãe, o Breu brasileiro”, “… Tudo aqui se chama Breu?..”, Chris riu, “E quanto tempo vai levar do Breu brasileiro, pra Thaumaturgo?”, ” Sei lá, mãe, e o dono do barco também não deve saber…”

Deus meu, será que não podíamos ter pego um barqueiro melhor? Realmente, aquele homem que nos conduzia, não parecia entender ou saber nada.

Peguei no sono algumas vezes, e fui acordada abruptamente, sempre que a canoa encalhava nas partes mais rasas do rio, e toda a água acumulada no seu chão jorrava lá de trás, passando sobre meus pés como uma enchente, e enquanto Chris entrava no rio para empurrar o veículo, eu ia lembrando onde me encontrava, sentindo grande alivio ao ver o verde das árvores acima de mim. Mas o dia começou a cair, e nem sinal de qualquer lugar onde se pudesse parar. Já tinha uma estrela no céu, quando o barqueiro informou que estávamos cruzando o limite para o Brasil. Chris me disse ser inviável viajar a noite naquelas canoas, e o tal Breu brasileiro começava a aparecer. O barranco do rio estava altissimo, mas havia uns três rapazes em baixo, perto da margem, que nos olharam como se fossemos apariçōes. Um deles chegou perto e, ajudando a puxar a canoa fora da água, perguntou de onde vínhamos. Meus dois filhos são tipicamente “gringos”, enquanto que eu não faço o tipo mais característico de brasileira, ou de nenhuma nacionalidade. Pra todos os efeitos, éramos todos estrangeiros, com excessão do barqueiro: o que levaria estrangeiros aquele vilarejo? “Estamos de passagem, para Apiwtxa, onde vamos encontrar o Benki”, Chris explicou, “Benki é meu amigo..” disse o rapaz, ” Tem alguma pousada aqui?”, “Sim, vocês sobem o barranco, e logo ali à direita, bem do lado da igreja, vocês encontram onde dormir, e podem vir comer na minha casa”, explicou amavelmente, o rapaz.

O “Logo ali `a direita”, encheu de água a minha bôca, fazendo-me imaginar cervejas geladas e até, quem sabe, ar refrigerado, à nossa espera. Nunca se sabe, e nossas expectativas, como miragens no deserto, resultam da fantasia daquilo que mais desejamos.

Escalamos o barranco carregando nossa tralha, como formigas sobre carregadas de tenacidade e volume, e, caminhando para `a direita, avistamos a pequena igreja, ” A pousada é isso…”, disse Chris, ao nos defrontarmos com o vizinho espaço aberto e ligeiramente elevado, sob um teto em que se podia pendurar nossas redes. Tchau cervejas, mas amanhã, ao menos, encontraremos Benki, pensei, dispondo nossas coisas `a volta das redes que o barqueiro e Chris penduravam.

Tipicamente Brasil, a comida que o rapaz nos ofereceu era pouca, mas o coração dele era grande, e isso que realmente conta. Agradecemos o mais que pudemos, e enquanto Chris conversava com ele e respondia suas inúmeras perguntas, eu voltei para a “pousada”, e qual a minha surpresa! Já noite fechada, a voz bombástica de um evangelista catequizando os inocentes, dentro da igreja, podia se ouvir como se ele estivesse na rede ao lado. Porque Jesus disse isso, gritava , sem a menor reverencia, Jesus proibiu aquilo, Jesus é o nosso Senhor, ele pode afastar o diabo, mas ele quer que se tenha fé e que se ajude a sua igreja, prosseguia, em tom alto mas casual, com a impunidade autoritária da mediocridade, como se falasse de alguém com quem acabava de tomar uma cachaça. Fantasiei entrar na igreja e lhe dizer que deixasse aquela gente em paz, pois eles na certa estavam mais perto do filho de Deus do que alguém que, falando do Senhor com intimidade inadequada e mentirosa, não expressava sombra de respeito, como se fosse seu igual.

Nossa! Ja era mais tarde que nove horas, e ainda tinha gente entrando na igreja… Como que eu poderia dormir, e se não dormisse, como aguentar o som daquela voz, dando show de pretensão e sensacionalismo? Pensei em Benki, que iriamos encontrar no dia seguinte, e que, sem nunca precisar pronunciar o nome de nosso senhor, me transmitiu mais fé do que qualquer pastor poderia transmitir, e até do que qualquer pastor, na verdade, deve ter. Benki, livre e sem dogma, Benki, pura vivencia do espírito. Então, me lembrei. Meu iPhone, com as gravações da obra prima de Proust, em meio ` as músicas que geralmente gosto de ouvir. Enfiei-me na rede que me fôra designada, fechei o mosquiteiro aderente a ela, enfiei em cada orelha os fones de ouvido, e adeus pastor, adeus catequização, adeus a tudo que distoa da espiritualidade autentica de Proust.

A passagem que me veio da Recherche foi a descrição proustiana da duquesa, por quem Marcel estava apaixonado. Vizinho dela, ele podia vê-la, de sua janela, aprontando-se diante do espelho, “no esquecimento mitológico de sua grandeza nativa, ela olhava se seu véu estava bem colocado, endireitava suas mangas, ajustava seu casaco, como o cisne divino faz todos os movimentos de sua espécie animal, mantendo seus olhos pintados dos dois lados de seu bico sem nem mesmo olhar, e se joga de repente num botão, ou num guarda-chuva, como cisne, sem se lembrar que é um deus.”

Embora Proust reconheça que sua imaginação, em busca da perfeição, vê dimensão transcendente no mais carnal de seus desejos, ele conclui que, na busca do amor, nós ligamos a pessoa amada a divindades, e assim povoamos nosso mundo com elas. Proust , na sua capacidade de adoração, se expressa de maneira tão linda, que suas descriçōes, com a validez da beleza, transmitem mais verdade do que a realidade factual, quer dizer, revelam as impressōes digitais de Deus, na pessoa que ele amava, na natureza, na beleza. Suas palavras, muito mais convincentes e, na sua intensidade poética, muito mais transcendentes do que as do pastor ao lado, transmitem, melhor do que qualquer padre, a presença da divindade. Viu o divino no humano, e o expressou, assim como Jesus constantemente mencionou ser filho do homem, na generosidade de repartir conosco a sua própria proximidade de Deus. “A carne é fraca”, mas, na sua possibilidade de entrega ao divino está a força do homem.

Consegui dormir, e já tendo passado a fronteira sem problema, sabia que no dia seguinte veríamos Benki. Pagamos nosso barqueiro e arranjamos outro por ali mesmo. Desse modo, alcançamos Marechal Thaumaturgo ainda de manhã, e conseguimos chegar a Apiwtxa sob o sol penetrante das duas horas e meia. Depois de subir o barranco, e caminhar grande parte da aldeia, arrastando nossa bagagem sob o mais intenso calor, encontramos Benki ao ar livre, conversando com outros índios. Já não mais esperando nossa visita, ao saber termos vindo do Peru e passado dezesseis horas numa canoa, ele deu uma grande gargalhada, de humor e boas vindas, como se tivéssemos, absurdamente, conseguido o impossível. Não se costuma ir `a Apiwtxa pelo Peru, a não ser alguém que, ao invés de seguir o que os olhos lhe mostram, e o “bom senso” coletivo, obedece `a intuição.