Depois de horas de paciência forçada no wifi super lerdo do hotel em Bordeaux, onde só mesmo sentando no chão perto da porta de entrada do quarto se conseguia algum acesso `a internet, pudemos finalmente comprar nossas passagens de trem para Paris. Paciência forçada significa na verdade impaciência reprimida, e dependendo de grau e duração, tortura mental. Quando se chega a esse ponto, é o nosso computador particular que vira alvo de raiva, afinal, o culpado tem que ser algo concreto e visível: chega de abstrações! Começa por se xingar o computador, coitado- e alimentar fantasias de fazer o mesmo que se vê naqueles anúncios que mostram algum desesperado, tendo erguido seu laptop indefeso , porém  verdadeiro traidor na sua ineficiência – e   sentir-se prestes à joga-lo contra alguma parede. A hora de partir estava chegando, o transito em Bordeaux congestionado por causa de uma maratona local, as passagens se nos escapando, e o stress aumentando.

Nada mais contraditório do que, nesse nosso tempo, ter que contar com a internet ( essa coisa que acelerou o mundo, que tornou lei o imediatismo eletrônico, o lance de se ter respostas, literalmente, na ponta do dedo) e essa internet funcionar a passo de cágado, como se risse da gente, ou da nossa expectativa da sua obrigatória rapidez. Coincidência ou não,  em todos os lugares  que ficamos na França ( e não quero citar nomes de hotéis que, longe de serem ruins, se anunciavam com orgulho)  o wifi era essa coisa patética, a não ser nos ótimos e conhecidos restaurantes, onde ninguém vai ter a pobreza de espirito de parar de curtir o momento pra ir “on line”, mas que eu, no desespero de, viajando, querer ver muitas mensagens  acumuladas, tive a cara de pau de perguntar a algum distinto  garçom, como penetrar na vulgar atividade eletrônica.  Mas no final das contas, depois de muito me estressar por me sentir quase todo tempo excluída, como um paria, da  omnipresença e omnisciência  da internet,  eu estava amando os franceses por parecerem  não viver on line. Acho que isso pode ter  a ver com o fato de eles serem mais introspectivos , de modo geral, relutantes  ao ritmo da frieza da exatidão mecânica  – e portanto, mesmo com um trilhão de policias com metralhadoras nos lugares “so called” turísticos, (falei “so called,” porque praticamente tudo, em Paris, é turístico, no sentido de contar uma estória, de merecer ser visto)  os franceses  me pareceram bem menos tensos do que os americanos. Estes últimos nos deram, pra não falar em PCs,  os produtos Apple que usamos para dar nossos passos triviais da própria rotina, e, como todos sabem, amam artifício e tecnologia. Mas tecnologia, cada vez mais, progride na direção de prover controle, programação, “domesticação” da vida. Tudo passa a ser planejado,  organizado, previsto, e há que se pagar o preço: O que disso escapa, aquilo que não se pode controlar, se transforma em bicho papão; no medo que traz não só uma constante atitude de defesa, como o ataque resultante dessa própria atitude. O imprevisto, condição sine qua non da criatividade da própria vida, passa a só significar ameaça. Big time. Quanto mais poder tecnológico se tem, quanto mais se puder controlar e programar, mais armado se fica, e mais pronto para o ataque, de modo geral. Mais se controla, mais se é também escravizado pelo meio de controle e  consequências.

Visitando alguns museus, fui com Edgar ao de arte moderna e contemporânea.   Neste ultimo, havia constantes shows de performance art lado a lado, ocupando salas inteiras. Os artistas eram  bastante jovens, o que já desperta  dúvida em relação `a sua qualidade. Não estou com isso dizendo que, para ser maduramente criativo, para ser Artista, na verdade, tenha que se estar na reta final, ou de cara com a morte, como  Proust ao escrever a  Recherche, já invalido e perto do fim. Mas, como bem sabem os índios, que veneram os seus anciães,  experiência de vida não é pra se jogar fora.

Voltando `a arte contemporânea, achei bem legal a performance que se chamava Slow. Quando um dos performers me “chamou” para participar,  eu ja estava achando o ritmo com que eles se moviam ritualístico, apaziguador, e bem adequado `a reverencia com que cada um deles carregava uma folha de bananeira colada ao rosto. Andavam sos, ou dançavam em pares, com pequenos passos em câmara lenta, pelo espaço disponível, levando aquela folha  que lhes escondia o rosto, como que proteção e bandeira a proclamar, ao mesmo tempo.

Performances  podem evocar o que for para seja quem for, ja que, expressando ideias, convidam `a interpretação,   e o inconsciente de cada um que interpreta é individual. Pra mim, ainda  dói o fato do artista contemporâneo nem ter que saber desenhar,  esculpir, e no caso dos que criam instalação, nem precisar  tocar no seu “material” de expressão. No final das contas, eles só tem que ter  ideias, que deixam para um time especializado concretizar . Esse tipo de arte dispensa, das alturas da abstração intelectual, aquele toque físico precioso da dimensão orgânica da arte anterior, o toque que, do corpo de cada um, transfigura a própria matéria com que na verdade comunga ao criar, e mágico se torna o resultado visível dessa comunhão. Mas nesse nosso tempo, que almeja controlar  os instantes mais fugazes da sua própria transitoriedade, a arte de instalação, na minha opinião, tem o mérito de causar, no espectador, o impacto de não saber o que pensar, ao mesmo tempo em que este literalmente entra na obra, e, no caso da performance, não saber não só o que pensar como o que fazer, estando prestes a interagir com ela. Tudo isso me  parece tratar-se de uma destruição de todas as  categorias mentais e rótulos através dos quais vemos o mundo, criando até mesmo o caos, mas, sem dúvida, resgatando o imprevisto.

Quando o performer do “Slow” veio andando na minha direção, segurando  a folha de bananeira que reverenciava, e me oferecendo a mão que estava livre, perguntei a ele o que fazer. Que absurdo  fazer uma pergunta trivial, num contexto que quebrava,  pra começar,  o próprio ritmo do tempo. Claro que ele não disse nada, eu lhe dei minha  mão e ficamos de la pra ca , entre outros pares, no seu mesmo ritmo lento. Naquela vagareza de movimento, as batidas do coração se acalmam, o pensamento descansa, e a folha de bananeira, segura entre o nosso rosto, escondendo e proclamando, continuou, como emblema de paz, a ser honrada. Era mesmo um ritual. Que contraste com a ameaça invisível do mundo la fora, pensando-se defendido por tantas metralhadoras e policiais.  E eu, mesmo sem ter logo de cara sabido  como agir, fiz o que qualquer outro “espectador” teria feito. Mas na liberdade total do tipo de impacto  dessa forma de arte, eu também poderia não ter saído do meu lugar. Agora que escrevo, me dá curiosidade imaginar o que  teria feito o performer,  se eu não lhe tivesse correspondido. Supostamente sem expectativas ou previsão,  ele seria capaz de improvisar. Há que se estar desarmado para poder ser amigo do imprevisto, dessa riqueza da vida que nos dá o  poder improvisar. Artista ou não, há que se estar desarmado, para resgatar a própria vida: Isso vale  para  todos nós, assim como para todo o planeta!