Prestes a passar pela segurança, no aeroporto de Denver, já atrasada e esbaforida, entrego meu passaporte e passagem para a agente TSA, uma mulher que, ao me olhar, logo pergunta, com um sorriso iluminando-lhe o rosto, se estou animada para viajar. Pergunta isso, pensei, considerando sua tão especial simpatia, num meio em que somos geralmente tratados com frieza, quando não, rispidez, porque imagina que estou fazendo uma viagem cheia de glamour e sofisticação, no mínimo por estar eu “coroada” com meu chapéu vermelho, e envolta num chale esvoaçante. Ja moro neste país há séculos e sei que americanos amam reconhecer mérito, não so em esforço e trabalho, mas no que consideram sofisticado e bem produzido. No que acham ter, talvez, um toque da cultura francesa que tanto admiram e que, pra eles, é quase que uma fonte de fetichismo e mistério. French kiss, denominam, por exemplo, o beijo de língua- porque lá no começo do século XX os franceses ganharam, no mundo que fala inglês, a reputação de serem mais apaixonados sexualmente- French fries, intitulam o que simplesmente chamamos “batatas fritas”, mesmo que estas possam ter sido inventadas na Bélgica, e por aí afora.

Esta simpática moça tentando escanear minha passagem não tem ideia que me produzi assim para compensar a chatice e o caráter repetitivo de uma viagem com fins puramente burocráticos a Houston, onde fica o consulado brasileiro que rege o território em que moro. “Não estou nada animada, vou a Houston por motivos burocráticos, e ja estou pra perder o avião”, informo, para que ela também se apresse. “Aww…”, ela responde, o sorriso virando expressão penalizada, “Não precisa ter pena de mim”, pensei, “ o melhor que vc pode fazer é me deixar passar o quanto antes”…

Mas a passagem não escaneia, e um outro agente que devia lhe ser superior corre para ajudar, “ainda bem, afinal imprimimos o bilhete em casa, porque essa alternativa é oferecida pela própria companhia aérea”, penso, tentando me acalmar. O homem, também, não consegue nada, e a moça me diz aborrecida, que devo voltar ao guichê da companhia e pedir outra passagem. “La no sexto andar”, ela diz, e acrescenta, entregando-me um cartão cor de laranja, “voce corre lá e na volta mostra isso, para poder ir para o começo da fila, agora vá rápido no guichê, pelas escadas rolantes lá do outro lado”, informa, detectando a total confusão no meu rosto. “Mas como a companhia aérea apronta uma dessas?” ainda consigo reclamar, enquanto saio dali aos trancos e barrancos, atropelando todo mundo `a volta, minha bagagem de mão dando trambolhadas nesse ou naquele inocente passante que “ousa” estar no meu caminho. Em resposta aos pedidos de desculpas que vou exclamando a torto e a direito, só ouço opiniōes amáveis, “Que chapéu lindo”, me dizem, gregos e troianos. Mas o sofrimento de pressa nos força o egoísmo de nos sentir com direito a só considerar nossos próprios interesses, e lá vou eu distribuindo desculpas mecânicas, enquanto ouço elogios sinceros.

Como é longe esse guichê… não vou conseguir, que m…, vou dizendo em português pra mim mesma, enquanto subo as escadas rolantes de dois em dois, competindo com esses degraus metálicos, a bagagem de mão, dois volumes sobre rodinhas, se despencando neles, o suor começando a escorrer por baixo da minha camisa. Chegando ao primeiro guichê que vejo, me informam que o da minha companhia é o outro, na extremidade oposta, e mais trancos vou dando naquela direção, enquanto anuncio pra todos estar `a beira de não conseguir pegar o avião. Que bom, não tem fila, não tem ninguém …, ainda me digo, atirando-me ao guichê indicado. “Se vc não chegar a tempo, volte aqui”, diz a funcionária entregando-me nova passagem, enquanto ja vou me lançando, novamente, de volta `a polícia de segurança. Como esperado, vejo multidōes se arrastando em funil para os raio x, e, tomando fôlego, ergo meu papelzinho cor de laranja, violando todas as filas. Daqui e dali, ainda posso ouvir, “I love your hat!” mas tenho que prosseguir, indiferente. Consigo passar, e, mesmo que nada tenha apitado, sou parada por uma agente corpulenta do outro lado, “ Tenho que te examinar”, diz ela, apontando para um gráfico na saída do raio x, que delimita uma extensão quadrada em torno da minha area genital, “voce tem a opção de irmos fazer isso naquela sala privada”, oferece, no mesmo tom autoritário. Penso que tudo isso é sexo sublimado, histeria coletiva, e lhe digo pra me examinar ali mesmo, “who cares…” ainda digo, re ensaiando, mentalmente, a fantasia de tirar toda minha roupa logo antes de passar pelo raio x, dizendo à policia que viria me prender escandalizada, “tudo pela causa da segurança!”, ou me fazendo de “selvagem” ignorante. Como iriam ficar furiosos os caras, fico pensando, enquanto a mulher passa as mãos por todo o meu corpo, fazendo perguntas idiotas a respeito do que eu levo nos bolsos, ou de onde está o “metal” que o gráfico acusou, “so pode ser o fecho da calça”, respondo, desprovida do meu chapéu escudo, que passava sob o raio x, coitado, em meio a toda aquela tralha sendo examinada. Já livre, recolho minha bagagem de mão, recoloco o chapéu na cabeça, e volto a apostar corrida com o tempo. Dentro do trem, nem sei em que ponto sair, mas ouvindo esse homem com bafo de álcool e roupa estilo cowboy elogiar meu chapéu, lhe peço informação. Ele me orienta, parecendo ate pronto para me seguir, pouco importa. Ofegante, chego ao portão do meu avião, esse 38 C que me ecoa na cabeça, e vejo que ainda estão embarcando, que bom e que saco ao mesmo tempo, mas os elogios continuam, o chapéu parece me dar todas as licenças. Já no corridor apertado do avião, ainda vou repetindo mentalmente 38 C, 38 C, esquecendo que tal designação correspondia apenas ao portão ja ultrapassado, e não ao meu assento, que então imagino ser la no final, aos trancos e barrancos, na corrida em encontrar lugar no compartimento de cima, para parte de minha bagagem. Chegando `a fila 38, finalmente, vejo todos os assentos ocupados, que folga dessa gente, tenho que exigir meu lugar, dessa senhora que se encontra sentada na letra C. Ela me olha com certa indignação, e eu lhe mostro minha passagem, com toda convicção. Sou agora olhada com perplexidade : ao invés de 38 C, a passagem mostra 7 D, “ …Meu Deus, estou completamente confusa”, desculpo-me, ja tentando voltar la pra frente, nadando contra a corrente humana que se espreme na minha direção. Passo um aqui e me encolho um pouco, passo mais outro, e ja tenho que pedir desculpas duplas, triplas, até quadruplas, pelos trancos da minha mochila no ombro ou cabeça de passageiros devidamente sentados, mas tenho que prosseguir, a fila de gente ainda entrando no avião parece não acabar, que sufoco, não vou encontrar lugar pra minha mala de mão, ainda estou longe da fila 7… Que bom, aquele comissário de bordo la na frente está me chamando, vai fazer os outros me deixarem passar, ja vou pensando, sob a autoridade do chapéu “escudo”, que o homem deve ter visto la de onde se encontra, causando alvoroço e caos, “boiando” mesmo, acima desse sufoco, contra à corrente. Mas o comissário, com melhor senso que eu, só faz indicar o espaço largo da porta de emergencia , dizendo-me para esperar ali, até que todos sentassem. Paciência, tudo bem.

Consigo chegar a Houston e ao hotel reservado, que é perto do consulado brasileiro. Tendo retornado da França três dias atrás, ainda estou sob o efeito da defasagem horária, da diferença cultural, e ainda pior, das saudades.   A troco de que, essa mulher que me registra está com tal ma vontade, não tenho ideia, mas a relutância com que responde qualquer coisa me enlouquece, será que esta me achando “metida” com esse chapéu? Fazendo o que ela me diz entre dentes, ao me entregar a chave do quarto, vou para os elevadores e aperto o número do meu andar ali mesmo do lado de fora. Uma luz se acende sobre o elevador em que devo entrar, e que so vai mesmo ao meu andar, pois, no seu interior, como grunhiu a mulher da recepção, não ha botōes numerados. O inferno da frieza e anonimidade humana começa: tudo nesse hotel gigante é indicado por gravaçōes, avisos luminosos, combinação de botōes, e longas esperas no vazio. Pra piorar, me dão um quarto de cadeirantes, bem perto dos elevadores, cujo barulho metálico é constante sobre a minha cabeça, ou dos lados , nem mais posso saber, o trósso parece assombrado. O quarto, enorme, árido, e impessoal, consegue ser mais desagradável do que a antipatia da mulher que me registrou. Não entendo nada desse telephone que eles tem, em que aperto botōes e só ouço de volta gravaçōes frenéticas cuja repetição não consigo dar fim, mesmo apertando outros botōes. Estou morrendo de fome, quero pedir comida, por que vim parar aqui? A antiga, mas sempre popular música dos Eagles, Hotel California, que diz, “you can check in any time you want, but you can never leave” me vem `a cabeça, porque ja estou `a beira do pânico, duvidando ser capaz de sair dessa monstruosidade, tanto menos conseguir fazer tudo que devo fazer, amanhã cedo. Sem uber no meu cellular, vou ter que contar com o hotel para me arranjar táxi, e ainda me conseguir o endereço de algum correio onde tirar a “money order” com que pagar os serviços do consulado. Sabe-se la porque, só aceitam ser pagos dessa forma. Ja é a segunda vez que venho a Houston pra conseguir a mesma procuração, tendo eles cometido erros que não detectei, no primeiro documento que me fizeram. A fome aumenta, são onze da noite e não consigo alcançar ninguém nesse telephone, nem mesmo contactar a recepção. Por que sou tão incompetente? Vou ter que voltar la em baixo, na humilhação de pedir ajuda…

Fora do quarto, corro para os elevadores, e aperto o botão zero ali mesmo do lado de fora, imaginando este corresponder ao andar da recepção; nada acontece… estou ilhada aqui… deixa apertar de novo… Outro longo momento que passa, e ainda nada… O pânico se aproxima, melhor apertar esse gráfico de cadeira de rodas, isso vai fazer com que se mexam… Mas se mexam… “quem”?…. Não tem mesmo ninguém; outra gravação desagradável diz que meu “itinerário” não foi compreendido. “Que itinerário, seus imbecis?”, desabafo, voltando freneticamente a apertar o zero. Afinal, um dos elevadores se abre, e me leva pra um sub solo gigantesco, obscuro, e ligado a outros hotéis. Vejo que esse homem suado e de shorts, saindo de alguma sala de ginástica, percebe a minha  aflição, quero  pegar o serviço de apartamento ainda funcionando,  pergunto-lhe onde fica a recepção do “meu” hotel, ao que ele informa corresponder ao número dois. Acima de nós, o número um era outro subsolo gigantesco. Que tipo de lógica idiota é essa? Sera que tudo aqui é feito pra enlouquecer, ou para pessoas já loucas?

Lembro-me de Paris, onde não me senti incompetente. Onde se podia ver rostos e falar com pessoas, no pequeno hotel em que fiquei. Lembro-me da arte que vi, da boa comida, da atmosfera íntima dos bistros e ruas estreitas. Da naturalidade das pessoas se encarar e conversar, mesmo sem se conhecer. Revejo até o aeroporto Charles de Gaulle, que prefiro a todos os outros que conheço. Foi là mesmo que encontrei, na loja Hermès, meu chapéu vermelho, sozinho na vitrine, sobre uma superfície branca, generosamente larga, que enfatizava a harmonia das suas linhas, a continuidade da sua cor, transformando-o num depoimento em si mesmo. Um “em si”, pra falar em termos de Kant. Assim como o urinol que Marcel Duchamp transformou em arte, tirando-o do contexto utilitário, quer dizer, tornando-o objeto de contemplação, sobre espécie de pedestal, os designers Hermès souberam o que faziam apresentando o chapéu por si próprio, fora de qualquer cabeça. Deram-lhe a independência da obra de arte, porque sabiam que merecia. Sentindo essa liberdade, e com algum dinheiro sobrando, me permiti compra-lo, sem pecado. Quase como segunda identidade. Ele correspondeu, através da luta nos aeroportos americanos. Mas nesses aeroportos, ainda há “pessoas”. Já, no antro de desumanidade que é o hotel, de que finalmente consigo sair, ninguém fala a sua lingua, ninguém conhece a liberdade que representa. Muito pelo contrário, vivem sob o jugo sem rosto das gravaçōes, combinação de botōes, gráficos imperativos, e abandono do coração.