Mas ainda não podia imaginar como esse apelido era adequado. Naquela época ele era o amor que eu sentia, e eu ainda não podia ver que ele era o próprio amor pelas pessoas, na sua aceitação de cada um de nós sem qualquer preconceito. Falo do meu filho, e para ilustrar o que digo, vou contar um pouco da nossa estória.

Chris já mora aqui na Califórnia há muito tempo e veio pra ca bem antes de mim por causa do mar. Antes de nos mudar para os Estados Unidos, quando ele tinha quatro anos, morávamos no Rio, num apartamento diante da praia da Barra, que acho a mais linda de todas.  No primeiro réveillon na vida de Chris, ele só tinha 10 meses e levei-o comigo `a praia para participar do rito que eu tinha de entrar no mar `a meia-noite. Enquanto ele estava na areia dentro no seu carrinho, com uma babá de tocaia, eu mergulhei e depois voltei para buscar ele e lhe dar também esse banho de descarrego. Tirei-o do carrinho e quando ele menos esperava já tinha entrado e saído do mar. Claro que abriu o maior berreiro, mas acho que algo nele muito profundo entendeu e se beneficiou daquele “batismo”.

Me lembro da importância que senti apresentando o poder da inocência à inocência do poder, quando Chris não tinha mais que dois anos e eu o familiarizei com o mar. Ele ficava tao `a vontade nas ondas que as pessoas do condomínio em que morávamos vinham me perguntar qual professor eu tinha contratado para ensinar ele a nadar e a não ter medo do mar.

Chris ajuda os nossos indígenas de forma totalmente anonima, através de patrocínios e de organizações que ajudou a fundar. Conseguiu que trinta poços de água fossem implementados nas terras dos Hunikuin e continua lutando por mais. Não ganha dinheiro com isso mas trabalha com surf, expandindo e inovando uma companhia que programa viagens especiais pra surfistas. Também ensina surf para adultos, crianças, e pessoas com deficiências físicas. Nessa categoria tem vários tipos de problemas e a maioria dos alunos sai direto de cadeiras de rodas para as pranchas de surf. Há uma estrutura de segurança durante as aulas que garante outros nadadores a postos para que nenhum aluno caia da prancha e fique muito tempo com a cara na água sem socorro, pois muitos nem conseguem se virar pra tona pra poder respirar.

Chris ajudou um desses a pegar uma onda, que foi ficando muito maior do que imaginavam. Num certo ponto, o aluno, que não tinha metade de uma perna e precisava segurar um cabo embutido na prancha pra se equilibrar, poderia ter se desviado e saído da onda, mas decidiu ir em frente. Conseguiu surfar a onda toda e a emoção foi grande, não só pra ele mas pra todos que viram. Chris depois me disse que ajudar aquele cara a pegar aquela onda fez ele sentir como se ele mesmo tivesse pegado quarenta ondas!

Isso me fez pensar que amor é sentir a felicidade do próximo como se fosse a nossa. É poder nos libertar de nós mesmos.

Tenho outra estória sobre isso.  Contei para Chris a conversa que tive com um advogado tentando me ajudar a planejar o futuro em termos de aposentadoria. O papo com aquele advogado foi mais do que deprimente. Ele dizia: “Se você viver até 88 anos, você vai precisar de mais X do que você e Steve botaram de lado. Se viver até quase 100, melhor pensar em negociar sua casa. Mas me parece que tem mais dinheiro aí do que o aparente…. Ganhando bem como ganha o seu marido, muito me admira que não tenha juntado mais. Por outro lado, você pode herdar tudo se ele morrer antes de você. Como é a saúde dele?”

Eu já estava detestando ouvir sobre essa contabilização da vida humana e falei pro advogado que não consigo e nem quero calcular os meus dias em torno da morte de alguém. Lembrei a frase horrível que os americanos inventaram, que avalia uma pessoa pelo dinheiro que tem. “Fulano vale tanto” dizem, identificando o cara ao que tem no banco. Falavam que Steve Jobs valia sei la quantos bilhões- que era o suposto valor da Apple. Jobs era místico, carismático, e único, mas valores numéricos só lidam com quantidade, numa total indiferença ao fato de que milhões de pilantras podem ter fortunas. É com espírito vingativo dessa mente venal que lembro o que disse Oscar Wilde: “O cínico sabe o preço de tudo e o valor de nada.”

Falei sobre sobre o efeito desmoralizante da conversa do advogado com Chris e ele disse, com uma clareza de sentimento típica de quem, ao contrário do cínico, sabe os valores do que tem valor:

“O problema é que os advogados com esse tipo de raciocínio julgam coisas infinitas através de limites.”

Muito certo, pois o coração e a vida são infinitos. Mesmo que aparentemente limitada no tempo, a vida é feita de momentos eternos. Mesmo diante de continhas mesquinhas sobre como garantir nossa sobrevivência, a eternidade do amor- do qual bem disse o Poeta “é finito posto que é chama, mas que seja eterno enquanto dure”- e a da vida, que aparentemente tem um prazo na cronologia do tempo mas é feita de momentos eternos, caminham de mãos juntas.

Amor é o nosso lastro na eternidade, quando a gente consegue sentir além da finitude e nos libertar do compromisso com a sobrevivência material com o medo que desperta. Por isso Jesus alertou no sermão da montanha:

Homens de pouca fé, vosso pai no céu sabe do que vocês precisam antes de que vocês lhe peçam. Não se preocupem com o amanhã, deixem os problemas do dia serem suficientes para o próprio dia.”

Quando olhamos o mar, ele nos mostra a pequenez de nossos problemas e nos faz sentir a verdade das palavras do Redentor.